DOLLE, Jean-Marie. Para compreender Piaget. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974. 202 p.
[sobre o método de observação pura] Entretanto, certos obstáculos limitam o emprego desse método. De uma parte, ele é laborioso e a qualidade dos resultados é obtida em detrimento de sua quantidade, pois é impossível observar um grande número de crianças nas mesmas condições. De outra parte, apresenta dois inconvenientes importantes. O primeiro provém da estrutura egocêntrica do pensamento da criança, pensamento não socializado, isto é, não-fundado no intercâmbio, na reciprocidade dos pontos de vista e que, por essa razão, contém, na medida em que é implícito, atitudes de espírito, esquemas sincréticos, quer visuais, quer motores, pré-ligações lógicas etc. O segundo provém da dificuldade em distinguir na criança, por causa do simbolismo de seu pensamento, o jogo da crença. p. 24
[sobre o método clínico] A linguagem é ainda conservada; ela começa a intervir apenas para justificar ações concretas realmente efetuadas. p. 28
O egocentrismo é o aspecto central do pensamento infantil de 2-3 anos a 7-8 anos. p. 28
"O que é então o egocentrismo intelectual?", pergunta PIAGET. "É uma atitude espontânea que comanda a atividade psíquica da criança no começo e que subsiste toda a vida nos estados de inércia mental. Do ponto de vista negativo, essa atitude opõe-se ao relacionamento do universo e à coordenação das perspectivas, isto é, em suma, à atividade impessoal da razão. Do ponto de vista positivo, essa atitude consiste numa absorção do eu nas coisas e no grupo social, absorção tal que o sujeito imagina conhecer as coisas e as pessoas mesmas, quando, na realidade, atribui a elas, além de seus caracteres objetivos, qualidades provenientes de seu próprio eu ou da perspectiva particular na qual está envolvido". p. 29
[...] Por isso, o pensamento simbólico é essencialmente constituído de imagens e de significações individuais incomunicáveis apesar da linguagem que o exprime. p. 30
[...] o egocentrismo manifesta-se na representação que a criança se faz do mundo. Esta é calcada sobre o modelo do eu e repousa em "uma assimilação deformante da realidade à atividade própria. A criança concebe as coisas como sentido, ao mesmo tempo, tais como a ela se mostram e dotadas de qualidades semelhantes às suas próprias". p. 31
Mas esse egocentrismo tem uma significação genética no sentido em que é a etapa necessária da passagem para o pensamento adulto socializado. Por ele, podemos seguir os progressos em direção à socialização do pensamento, o que não exclui que a socialização das condutas já esteja adquirida. p. 32
[..] a partir dos 3-4 anos, aparece certa forma de pensamento diferente da do adulto, o pensamento simbólico, do qual o egocentrismo intelectual é um dos caracteres essenciais. O que lhe falta, do ponto de vista lógico, é a reversibilidade. Quando, depois dos sete anos a reversibilidade lógica estiver adquirida, serão notadas modificações radicais das condutas intelectuais, sociais, etc., no sentido da reciprocidade e da cooperação e uma diminuição progressiva e relativamente rápida do pensamento simbólico. p. 33
[Piaget] "Esses trabalhos fizeram-me compreender por que as operações lógicas e matemáticas não podiam formar-se independentemente umas das outras: a criança só pode apreender uma certa operação se é capaz simultaneamente de coordenar operações, modificando-as de diversas maneiras bem determinadas — por exemplo, invertendo-as. Essas operações pressupõem, como toda cultura inteligente primitiva, a possibilidade de fazer desvios (o que corresponde à 'associatividade' dos lógicos) e retornos (a 'reversibilidade'). Assim, as operações apresentam sempre estruturas reversíveis que dependem de um sistema total que em si pode ser inteiramente aditivo". p. 35
Se agora quiséssemos caracterizar a epistemologia, diríamos que ela concerne ao estudo do conhecimento, tendo como questões principais: Como se formam nossos conhecimentos? Como aumentam? Velho problema que sempre ocupou a Filosofia, mas que ela sempre abordou unicamente com os meios da reflexão. Esta é a razão pela qual a epistemologia sempre foi — e ainda é em grande parte — objeto da especulação puta. Ora, o mérido de PIAGET é o de tê-la situado no terreno da experiência científica. Observando inicialmente que "existem múltiplas formas do conhecimento, cada uma das quais levanta um número indefinido de questões particulares" [...] PIAGET renuncia a estudar o que é o conhecimento ou a tomar partido sobre a natureza do espírito e coloca de imediato a questão múltipla: Como aumentam os conhecimentos?, situando-se não somente no nível interdisciplinas, mas igualmente no nível genético. Dito de outra maneira, "a teoria dos mecanismos comuns a esses juntam a outros fatos, constituiria uma disciplina que se esforça, por diferenciações sucessivas, por se tornar científica". Questão de direito, sem dúvida, mas bem colocada se consideramos os problemas de método. Ou, por outras palavras, "o método genético equivale a estudar os conhecimentos em função de sua construção real, ou psicológica, e a considerar todo conhecimento como relativo a um certo nível de mecanismo dessa construção". p. 45
"Se chamamos de acomodação esse resultado das pressões exercidas pelo meio exterior(...), podemos dizer que a adaptação é um equilíbrio entre a assimilação e a acomodação". p. 50
Assim, a adaptação intelectual é um "equilíbrio progressivo entre um mecanismo assimilador e uma acomodação complementar" e "a adaptação só se perfaz quando resulta num sistema estável, isto é, quando há equilíbrio entre a assimilação e a acomodação". p. 51
A assimilação e a acomodação são — sabemos agora — os dois invariantes funcionais reveláveis em todo ato de inteligência. Mas, ainda assim, cumpre considerar aquilo que se adapta, ou, por outras palavras, os problemas de estrutura e os elementos que entram na composição dessas estruturas. Como, por outro lado, na perspectiva genética em que se coloca PIAGET, não há estrutura sem gênese, nem tampouco gênese sem estrutura, e posto que há continuidade do biológico ao psicológico, cumpre com efeito começar por uma extremidade e seguir a cadeia dos desenvolvimentos ulteriores até o estado de "equilíbrio final". Foi por isso que PIAGET aplicou-se em estudar, a partir das estruturas iniciais do recém-nascido, as estruturações sucessivas. p. 52
No nível sensório-motor, com efeito, encontramos o equivalente funcional de uma lógica na coordenação das ações. A unidade dessa lógica é o esquema. Ora, o que é um esquema? "Chamaremos de esquemas de ações àquilo que, numa ação, é assim transponível, generalizável ou diferenciável de uma situação à seguinte, ou, dito de outro modo, o que há de comum às diversas repetições ou aplicações da mesma ação. p. 57
PIAGET distingue, portanto, dois tipos de experiência (ou dois componentes de toda experiência): a experiência física e a experiência lógico-matemática. "A experiência física consiste em agir sobre os objetos para descobrir suas propriedades, tirando-as deles por uma abstração "simples" a partir das informações perceptivas às quais dão luga. p. 62
As operações não são pré-formadas; elas se constroem de maneira contínua pela abstração refletidora que, como sabemos, reflete num plano superior a estrutura elementar inicial, reconstruindo-a e alargando-a. Assim, consistindo as abstrações refletidoras em transformar os objetos ou as situações, elas só se exercem por ocasião de problemas, de conflitos, de desequilíbrios. Ora, a reconstrução operada consiste em restabelecer o equilíbrio anterior, ampliando o campo de equilíbrio por uma modificação das estruturas. Assim, no domínio intelectual, a noção de equilíbrio caracteriza-se pela compensação. Não sendo um estado de repouso, mas procedendo de uma adaptação, o equilíbrio é móvel, de tal maneira que, em presença de perturbações exteriores, o sujeito procura reduzi-las por compensações de sentido inverso. Eis por que a equilibração leva à reversibilidade, propriedade das estruturas operatórias. Como processo, ela leva as operações em direção as formas de equilíbrio cada vez mais amplas e de níveis superiores, sendo as formas inferiores apenas formas de equilíbrio aproximadas. p. 71
[...] a assimilação consiste em incorporar um objeto ou uma situação a um esquema; a acomodação, em compensação, em modificar o esquema em função das propriedades do objeto que impedem que a assimilação funcione. Toda atividade espontânea consiste, portanto, em assimilar primeiro, em acomodar em seguida. A adaptação realiza-se quando a assimilação e a a acomodação se equilibram. p. 109
O grupo é, na realidade, um sistema de transformações. Este Este coordena diversas operações segundo quatro propriedades: composição, reversibilidade, identidade, associatividade. p. 110
No segundo período (7 a 11-12 anos), com a reversibilidade adquirida, as operações de classificação e de seriação que se elaboram enquanto se constituem especialmente os invariantes de substância, peso e volume, permitem pensar de maneira mais móvel a realidade concreta. p. 116
[Piaget] "A imitação [...] constitui ao mesmo tempo a prefiguração sensório-motora da representação e, por conseguinte, o termo de passagem entre o estágio sensório-motor e o das condutas propriamente representativas". p. 119
Entre a linguagem e a imagem, todavia, a diferença é grande. A linguagem repousa num sistema de signos convencionais, fixados arbritariamente por uma tradição linguística dada e tais que não há nenhuma relação de semelhança entre o significante e o significado. A imagem, em compensação, é, aproximadamente, uma cópia do real e permite evocar o objeto, a pessoa ou a situação em sua ausência. Como tal. ela é lembrança-imagem e imagem-cópia. p. 120
[pensamento imagístico] Esse pensamento pode ser observado no jogo simbólico onde a criança transforma o real ao bel-prazer das necessidades e dos desejos do momento. Conforme as exigências do jogo, uma concha será um gato por assimilação de sua forma arqueada às costas do gato, logo por apreensão de uma semelhança parcial entre o significante e o significado, ou um prato, um carrinho para deitar a boneca, uma barca, etc. O real é transfromado pelo pensamento simbólico na medida em que o jogo se desenrola, isto é, ao sabor das exigências do desejo expresso no e pelo jogo.é por isso que PIAGET pode dizer que o jogo simbólico era o egocentrismo no estado puro. p. 121
[...] a partir dos 7 anos, chega-se a uma conservação de tipo operatório porque, desde o reconhecimento da equivalência, este se mantém quaisquer que sejam as deformações figurais que operemos. Essa conservação é operatória, de um lado, porque repousas na constituição de um invariante (aqui, a equivalência) e, portanto, no fato de que, quaisquer que sejam as transformações operadas, uma e pelo menos uma única propriedade não é alterada. Por outro lado, ela comporta a operação inversa, a saber, a possibilidade de retorno à situação inicial em pensamento. p. 134