sábado, 4 de janeiro de 2014

FICHAMENTO DE TRANSCRIÇÃO — A Boneca Industrizada, Espelho da Sociedade - Gilles Brougère

BROUGÈRE, Gilles. A Boneca Industrizada, espelho da sociedade. IN: ______. Brinquedo e cultura. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1997. p. 25-39.

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É possível levar a sério essa metáfora do espelho? [...]Há muito tempo que, entre nós, a boneca se relaciona a um sistema de produção que podemos chamar de industrial, mesmo que esta indústria tenha conservado, mais do que outras, aspectos artesanais.[...] Existe uma descontinuidade nessa história da indústria de bonecas. [...] Tratando-se de boneca da indústria racionalizada, 

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poderia ousar chamá-la de boneca racionalizada? Isso parece inconveniente e até contraditório [...].Espelho da sociedade: [...] . Trata-se de um objeto que, de uma maneira ou de outra, não reflete a sociedade que o tornou possível. [...] De que a boneca pode ser o espelho? Da sociedade, ser monstruoso [...]. Parece haver uma desproporção. [...] Essa deformação através do espelho, se é que existe, talvez não seja arbitrária.[...] O que a boneca reflete e como o reflete? [...]

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1. Indústria e tradição

[...] Já dei a entender que a noção de sistema industrial não é unívoca. Porém, além das diferenças, existem pontos em comum que apareceram na base de uma ruptura com um outro sistema de produção que chamamos [...] de artesanal ou tradicional. Existem ainda [...] os intermediários comerciais, a extensão do mercado, as relações entre produtores e consumidores no seio da sociedade. A boneca parece ser fruto dessa ruptura. [...] Outras mudanças aconteceram [no sistema industrial] no decorrer dos anos, [...] não somente na escola da produção com o surgimento da matéria plástica, mas também na distribuição, através de novas formas de promoção e de publicidade 

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e na própria concepção dos produtos. É nesse movimento que se situa o processo de racionalização. [...]  [que] passa pela aplicação de técnicas de análise do mercado, de determinação da expectativa dos consumidores, de criatividade e de testes dos modelos fabricados. O brinquedo, e em particular, a boneca, entraram bastante tarde nesse sistema racional de produção. [...] num primeiro momento a indústria [se apossou] dos produtos concebidos no espaço artesanal. [...] numa segunda etapa [...] a concepção se racionalizou, ultrapassando as formas herdadas da tradição e dos métodos intuitivos ou empíricos. Daí a noção de boneca racionalizada, evocando a segunda geração da boneca industrializada.

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[...] não se pode omitir que algumas de suas formas atuais [das bonecas] é um objeto mais recente do que se imagina: a boneca-bebê [...] apareceu recentemente, sendo contemporânea do processo de industrialização de meados do século XIX. Se a existência de uma representação humana oferecida à criança ou criada por ela mesma através da boneca parece ser de extensão quase universal, a forma que toma essa representação varia consideravelmente segundo os sistemas de produção, as expectativas sociais e as mentalidades. Acontece que aquilo que é espelho ou reflexo não é o que existe em comum a todas as bonecas possíveis mas, ao contrário, é aquilo que as diferencia entre si. O que é comum pode ser reflexo de uma estrutura de pensamento próprio à espécie humana, e não reflexo de uma sociedade já determinada. [...] Qual é, atualmente, o resultado de um tal processo? Quais são alguns dos efeitos da racionalização para as bonecas contemporâneas?

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[...] atualmente a boneca se diversifica de maneira racional, especializando-se para atender a uma determinada função particular 

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ou unindo-se a outros objetos muito próximos da infância. [...] O processo de racionalização está longe de ter terminado, pois encontra-se em seus passos iniciais. [...] trata-se de racionalização na medida em que métodos empíricos são substituídos por conhecimentos e técnicas mais ou menos estruturadas. [...] 

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A boneca é [...] a testemunha de uma sociedade competitiva, onde a racionalização visa [...] se precaver do fracasso num mercado aberto e com uma concorrência cada vez maior [representando assim] [...] as evoluções da abordagem do produto no interior da empresa [...] [e] deve entrar num outro universo! O da criança, o da relação afetiva. Acontece que a criança, na nossa sociedade, fica à margem do mundo da produção e por consequência da concepção. Desse modo, é contraditória a maneira como a boneca atual reflete um sistema de produção ao qual ela deve muito.

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É muita petulância pretender que a boneca seja espelho de complexas forças econômicas que tecem nossa forma de consumo. [...] ela é o produto de sua época, época de produção industrial racionalizada, ligada à nossa sociedade de consumo. [...]

2. Espelho da sociedade

[...] O que pode refletir a boneca senão o meio social? 

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[...] o que está refletido: a sociedade? [...] Pode-se pensar que a boneca é um espelho deformante, um espelho para destinatários certos, um espelho para a criança, espelho ao qual está ligado um reflexo que não é atribuído a nenhuma realidade precisa.

3. Um espelho deformante

[...] o espelho é seletivo, escolhendo certos objetos do ambiente infantil para fixá-los, como por exemplo

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a maternagem e os cuidados infantis, valorizando certos modos de vida e o ambiente de algumas classes sociais. [...] Proporei como hipótese que o mundo da boneca reflete mais uma imagem social da realidade do que a própria realidade social. Reflexo de um reflexo, o mundo da boneca parece tão mais interessante quanto mais for o resultado de um trabalho de releitura da realidade, qualquer que seja o grau de consciência dos agentes que produzem o trabalho. [...] De preferência, trata-se mais de significar do que de representar a realidade. às vezes, quanto mais esse

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real é simplificado, deformado, reformado, mais o imaginário é, também, uma fonte de inspiração. [...] São, portanto, representações arbitrárias? [...] É um reflexo para a criança, é um espelho que fixou imagens para ela. [...] A boneca, como outros brinquedos, pode ser considerada como um objeto mediador entre adultos, entre um mundo adulto e o mundo infantil. [...] A boneca torna-se espelho de um mundo para a criança, apóia-se naquilo que pode ser contemplado ou admirado por ela; tudo se torna, então, função das representações que o adulto faz da criança.

4. A boneca, espelho da infância

[...] não é a própria infância que, para ser admirada, se contempla na boneca, isto é, a maneira pela qual uma sociedade considera a criança, suas experiências, seus desejos?

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Passou-se [no século XIX e XX] do antropomorfismo indeferenciado para o paidomorfismo (o interesse centrado na infância; a boneca passa a significar a criança, seu ambiente e a própria infância, enquanto imagem manipulável, não do ser humano em geral, mas dele próprio enquanto criança. [...] o mundo da Barbie ou da "Xuxa" são duas maneiras de representar as aspirações de uma menininha e de mateerializar seus desejos. [...] Esse surpreendente espelho, que é a boneca, transforma a realidade para dispô-la em função de uma representação da criança, em função da maneira como se imagina que a criança represente para si o mundo. [...] A boneca é, então, o espelho de uma infância ideal, idealizada, porém destinada à criança, e isso segundo diversos caminhos possíveis.

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Desse modo a boneca reflete para nós [...] nossa próprias representações, diretas ou indiretas, da infância.[...] Desse modo, a boneca é, antes de tudo, espelho da infância, sempre uma representação relacionada à infância; [...] ela pode ser o reflexo da sociedade e de um sistema de produção. [...] A boneca-brinquedo está, portanto, longe de ser uma superfície que reflete. [...] Os traços de um sistema de produção são, às vezes, difíceis de serem encontrados e é preciso que existam na boneca informações externas. Na verdade, vê-la exclusivamente como um espelho da sociedade é deixar-se levar por uma 

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imagem concebida numa relação com nossa concepção de infância. [...]  O que faz a criança com esses múltiplos reflexos que ela manipula através desse objeto material? Sempre se encontra nele? Será que não faz dele o espelho de suas brincadeiras, de suas pulsões, de suas fantasias, de suas angústias?